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CARTA SOBRE JULIETA HERNÁNDEZ

Julieta Hernández era artista de rua, cicloviajante e migrante. É fundamental que comecemos esta carta assim. Porque são estes os
lugares de atuação, fala e luta em que orbitavam a existência dela. Eram seus espaços de enfrentamento, na sutileza do seu doce devir, ao sistema capitalista, patriarcal e opressor. Uma forma peculiar e especial de se  posicionar e agir.

Julieta era venezuelana, ativista do uso da bicicleta, mulher com projeto solo e independente de democratização e descentralização das práticas sociais e culturais, palhaça, escritora, bonequeira. Era veterinária, protetora dos bichos em seus caminhos, estudante do teatro, entusiasta e pesquisadora do Teatro do Oprimido. Julieta era, e sempre será, uma das maiores referências de militância artística, humana, social e interdisciplinar que nosso continente pôde contemplar.

Julieta era uma cicloviajante experiente, com 4 anos de contínua movimentação, articulada em redes de apoio, responsável e cuidadosa ao extremo pela parte que lhe cabia. Na verdade, Julieta fazia muito além do que precisava. Julieta era um exemplo vivaz para toda a comunidade de artistas de rua nômades que tece essa grande rede, tão marginalizada, estigmatizada e incomprendida. Julieta estava na rua, fazendo arte e você pode ter dado as costas a ela em algum cruzamento por aí.

Julieta era migrante. Fazia pouco das fronteiras desnecessárias, as que partem ao meio o povo oprimido, que nos colocam uns contra os outros. Julieta respeitava com nobreza as fronteiras que cuidavam das comunidades, do saber tradicional, do tesouro contido no cotidiano das matas, florestas, rios e vilarejos. Julieta entendia e se relacionava com esse debate e lugar de atuação como poucos.

Julieta era uma mulher que ousou fazer seu caminho por conta própria. Por mais que se articulasse em diversas redes, tinha um ímpeto solitário, fazia uso do direito de ser por inteira, de ter a individualidade perpassada por suas emoções e experiências. Seu lugar de criação e vivência de mundo era particular e sagrado. Julieta era uma mulher corajosa, com os pés fincados na realidade e não é aceitável qualquer outra maneira de vê-la.

Julieta, como agora todas as pessoas sabem, era cheia de afetos, amizades, amores, possuía o dom e a sensibilidade da escuta ativa e real. Escutava, entendia e fazia o que era preciso de acordo com suas convicções. Julieta era uma filha indo ao encontro da mãe. Julieta simplesmente ia, porque sabia que indo é a única maneira de chegar.

“Viagem de bicicleta de uma palhaça só… Sozinha?”, Julieta nos perguntava assim, de cara, logo no título do seu espetáculo. Miss Jujuba, nós que conhecemos e respeitamos teu existir há tempos, podemos te dizer que não. Mas agora, você que lê essa carta, que por estas palavras
pôde se aprofundar nas nuances dessa potência questionadora, provocativa e poética em sua própria essência, te perguntamos: você consegue romper tudo aquilo da convenção e violência sociais que não permitiram que Julieta chegasse em casa?

Julieta não está mais aqui. Cabe a nós pensar: o que faremos por Julieta daqui pra frente? Por um novo paradigma de respeito à individualidade e existência dos corpos femininos e dissidentes. Pela valorização e reconhecimento da arte de rua como lugar imprescindível no campo da atuação cultural e social. Por uma relação menos consumista com o mundo e seus recursos. Por um olhar de acolhimento e empatia para o migrante e seu direito ao movimento e permanência.

Canto, som, riso, palavras, mãos de pequenos fazeres animados, grandes atos de amor, rompimento de muros a cada pedalada: Julieta era a junção poderosa que revolucionou caminhos.

Vá em paz, Juli, você fez muito por aqui.

#JULIETAPRESENTE

Assinam como autoria desta carta:
Luiza Soares @circomuamba
e grupos de amigues integrantes do Coletivo Julieta Presente:
@pevermei @palhacosalsicha @circodoasfalto @circodisoladies @guadalupemerki

Biografia Julieta Hernández:
Julieta Hernández tinha 38 anos, era venezuelana, palhaça, cicloviajante e bonequeira. Em sua terra natal, formou-se em veterinária, fez estudos na área do teatro e veio ao Brasil para estudar Teatro do Oprimido. Aqui, seguiu firme em suas pesquisas e experimentações artísticas, vivenciando cada vez mais a palhaçaria. Vivia no Brasil desde 2015 e em 2019 começou a viajar de bicicleta, se apresentando como palhaça Miss Jujuba por cidades de mais de 9 estados brasileiros, percorrendo a região Norte e Nordeste do país, num caminho que a levava de volta a seu país de origem. Nestas andanças, com seu Cuatro Venezuelano e muitos sonhos na bagagem, esteve em diversas pequenas
comunidades pelos interiores do Brasil, participou de encontros e festivais autogestionados e compartilhava seus saberes de maneira voluntária por onde passava. Mesmo em projeto solo, participou de iniciativas coletivas como. Red de Payasas Venezolanas e os Palhaços Sem Fronteiras, no Brasil. Foi, e sempre será, considerada uma das maiores referências de artista nômade e migrante da América Latina.

 

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